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sexta-feira, novembro 26, 2004


Jorge Palma de Sul a Norte no 'Público'


Foram vinte dias de estúdio, sem exasperações nem sinais de ansiedade. "Um mês de Agosto extremamente sossegado, muito mais do que se eu tivesse ido para uma praia, provavelmente," diz Jorge Palma, que acaba de lançar "Norte", o primeiro disco que faz sem a pressão do álcool, que andava a atormentar-lhe a vida e a carreira. Gravado no norte do país, com músicos do norte e à procura de um novo norte (razões para reforçar o título), o disco conta com um lote de músicos considerável: Mário Barreiros (produtor), Mário Delgado, Carlos Bica, Flak, Frank Möbus, Miguel Ferreira, Marco Nunes, André Hollanda, Mário Santos, Mário Brito, José Luís Rêgo, Ricardo Dias, Rui Alves, os Dixie Gang e uma secção de (12) cordas dirigida por António Augusto de Aguiar.

Neste disco, em vez do Palma's Gang temos o Norte's Gang?

Até o Mário Delgado, fiquei a saber que é de Águeda! E o Möbus [alemão] é mais do norte ainda... Agora a sério: comecei a chamar "Norte" ao disco por razões óbvias, queria gravar num estúdio do norte, com o Mário Barreiros. Depois o título foi ficando. Comecei a brincar com o facto de o Elvis Costello ter lançado "North" (disco de que gosto bastante) e às tantas já não fazia sentido chamar-lhe outra coisa...

E este piano azul da capa, no meio de uma estrada, apareceu como?

Eu estava em Nova Iorque, em viagem, e o Tó Trips ia-me mandando esboços. As fotos da Isabel [Pinto] eram porreiras, as ideias do Tó também, mas havia qualquer coisa que não jogava. Quando vi essa, telefonei a dizer: não mexam! Soube depois que é uma miniatura. Entretanto filmámos quatro canções com a banda e, para as filmagens, a dona Isabel vestiu de azul um piano a sério, ficou igualzinho a esse.

À semelhança dos discos do Fausto e do José Mário Branco, "Norte" surge como uma reacção aos tempos em que vivemos, aos comportamentos, às guerras...

Há imagens que eu não teria ido buscar se não vivêssemos esses tempos. Falo de tréguas, de legionários... estamos a viver uma época muito estranha.

Que nos pode conduzir a quê?

Não sei. Nem tenho soluções. Sei apenas que a sociedade se encaminha para um ponto de ruptura. Populações a viver em condições sub-humanas, um pânico em relação ao desemprego... Então em termos ecológicos nem se fala, não sei como vai ser.

A primeira canção, "O passeio dos prodígios", reflecte essas preocupações. Mas foi a última a ser escrita e no tempo recorde de três horas. É quase um hino, só voz e piano...

Essa foi feita de propósito para abrir o disco. Como abro sempre os concertos sozinho, ao piano ou à guitarra, decidi também abrir o disco sozinho, com essa balada.

A música, nos primeiros acordes, tem algo de "Imagine" mas depois, numa breve passagem, parece citar "The Boxer", dos Simon & Garfunkel...

Exactamente. Essa presença senti-a logo. Depois pensei: ou dou a volta a isto ou deixo-a assim. Deixei. Há um poema de que gosto muito, o "Prufrock", do T. S. Elliot, que diz "Let us go then, you and I, as the evening is spread out against the sky (...) through certain half-deserted streets". Peguei por aí: "Vamos lá contar as armas/ tu e eu de braço dado/ nesta estrada meio deserta..." Depois continuei e saiu assim.

O "Optimista céptico" é a tal canção sobre a guerra que lhe andavam a pedir?

A ideia foi essa. Já percebi que houve quem ficasse desiludido, mas acho que tem bastante força e vai ser uma canção porreira para tocar ao vivo. Aliás, este é um disco que eu gostava que as pessoas conhecessem, ouvissem, mas depois vai ter vida própria: quem gosta gosta, quem não gosta não gosta. O que sei é que foi feito comigo sóbrio e isso é uma inovação, nesse aspecto é revolucionário [risos]. Se tiver bebido um copo de vinho foi num jantar ou assim. Agora bebo pouquíssimo. Whisky e cerveja nada. Vinho, só uma vez por outra. E isso é bom, porque já me detestei...

Começou a ser complicada, essa dependência, até na própria criação?

Há um período em que é estimulante, mas eu já não estava a apanhar esse estímulo, essa euforia criativa. Só me turvava as ideias, a autoconfiança, e aumentava o desânimo.

Em "Escuridão" fala na necessidade de encontrar um equilíbrio: duas pessoas podem ter razão, cada qual na sua vez ou até ao mesmo tempo. Desde que se ouçam.

É uma sátira e a ideia é mesmo essa. Começou por ser só música, inspirada numa coisa do Sting, "Whenever I say your name" [dueto com Mary J. Blige]. Uma progressão de baixo com uma pulsação de palavras, de sons. A letra é autobiográfica, mas não totalmente porque toda a gente tem episódios desses. Cada um quer ser dono da razão. Mas tem que ser à vez, tem que se ouvir o outro e saber pedir desculpa, às vezes. No fundo, levado ao exagero, é baseado na relação que duas pessoas acabam por ter quando estão demasiado tempo próximas. Com quezílias desnecessárias.

"Os demitidos" é quase uma declaração de princípios. Tem um alvo certo?

Certo tipo de mentalidades. O "obviamente demitido" vem da célebre frase do Humberto Delgado, isso é óbvio. Não é dedicado a ninguém específico, mas a um tipo de pessoa cinzenta, encostada ao seu tacho, com medo de ter ideias inovadoras. E que, por ter poucas ambições (ambições saudáveis), gosta que as coisas fiquem como estão enquanto der jeito. Acaba por ser uma maneira de estar retrógrada, que impede que as coisas se renovem. É a prepotência, a maledicência...

Os arranjos de cordas quiseram dar uma densidade dramática a certas canções?

Há três canções com cordas. Uma delas é o poema do Al Berto, "Acordar tarde". Tinha pensado, nas partes mais suaves em que só estava o clarinete, meter trompa, fagote, um naipe de madeiras. Mas quando ouvi os dois clarinetes, preferi deixá-los sozinhos com o piano. Quando entram as cordas, dão-lhe uma intensidade ofegante. Em relação às outras canções, o Mário Barreiros disse-me para ouvir um disco do Beck. De facto inspirou-me. Normalmente quando trabalho com cordas ou instrumentos de orquestra, de sopro, gosto de fazer uma escrita horizontal, cada um a fazer a sua melodia, tipo fugato, ou então em escrita vertical mas aberta. Aqui usei o uníssono, que é o que o Beck faz, o que dá uma intensidade, um dramatismo, todos a tocar a mesma nota...

Precisamente o contrário do que sucede com os Dixie Gang, não?

Aí é o oposto. Não escrevi para eles, eles ouviram e puseram-se a desbundar.

"Tama-ra" foi das primeiras canções a surgir ou foi mesmo a primeira?

Como música, sim. É dedicada à minha namorada e é a canção mais brincalhona: bailarico, praia... foi tendo várias letras. Comecei a ouvir essa melodia insistentemente, de cada vez que estava na praia. Lembrava-me também do "Dolphin's dance", do Herbie Hancock, dos anos 70, desse ambiente, depois comecei a lembrar-me das coisas dos anos 20, do Jack Nicholson no "Shining", naquele final... Entretanto fui brincando, todos os dias tinha palavras diferentes. Até que ficou essa.

"Há quanto tempo" é uma deriva de uma música feita para um disco de poemas relacionado com os 30 anos do 25 de Abril. A letra seguiu depois outras pistas?

A referência fundamental para a música, que depois tive que verificar que não era plágio, é o Nino Rotta no "Padrinho" do Coppola. No disco de poemas vou abordando o tema com vários ritmos, mas a introdução é quase solene, piano aberto, graves, como se fosse ali a criação do mundo. A letra fala de um amor impossível, como o do cavaleiro da Idade Média sempre apaixonado por aquele ser perfeito que nunca se encontra...

Isso liga bem com o "D. Quixote foi-se embora" que vem a seguir. É propositado?

Não, foi um alinhamento provisório que ficou. Baseei-me também na sequência de tonalidades. Nessa fase há três canções em dó, só que é dó maior, menor, ritmos diferentes. O disco começa em lá, passa por ré, mi menor, demora-se em dó vai para sol, em relação à sequência de letras, de ambientes, começou a fazer sentido ficar assim.

O "D. Quixote" foi escrito originalmente para uma peça da Incrível Almadense?

Foi, mas tem uma história mais antiga. A música escrevi-a há vinte e tal anos na fase de Paris, de rua, de metro. A letra era em inglês, inventada à chuva entre o Petit Palais e o Odeon. Escrevi-a quando cheguei ao hotel. Chamava-se "Ballad of a stranger" (depois, já escrevi "Balada dum estranho", que não tem nada a ver). É evidente que a letra em português não podia ser uma tradução, mas mantém o mesmo espírito.

A canção do disco é a mesma da peça ou teve alterações?

Teve uma pequena alteração. Onde estava "Dom Quixote foi-se embora/ com o amigo que nunca existiu" ficou "com o amigo que a tudo assistiu". Porque o Sancho de facto existiu e também se foi embora. Acabou a história, mas é um final menos infeliz.

Mais infeliz é a constatação de "Gosto de brincar com o fogo": "Neste mundo em chamas/ neste planeta a arder/ Neste inferno na terra/ temos tudo a perder." É uma canção que parece brincar com as coisas, mas no refrão acentua o seu lado mais dramático.

Nessa parte acentua, de facto. No resto brinca. Ao escrevê-la, e é a primeira vez que estou a falar disto, estava no meu subconsciente a maneira com o Rui Reininho aborda as pernas das freiras, coisas assim... Quanto a brincar, estou a lembrar-me, por exemplo, do Oscar Wilde. Mas depois há coisas com que não se brinca. Uma pessoa pode até ser incómoda, inconveniente, cínica, pode ser hipócrita inclusive, mas há um limite, o da condição humana, que impede de brincar com as coisas mais terríveis.

"Valsa dum homem carente" foi a primeira letra do Carlos Tê para este disco?

A primeira nem foi essa, foi "Demónios interiores". Ele disse-me: "há duas letras que eu quero que leias porque acho que cabem muito bem." Nem sequer sabia ainda que ia gravar para o norte, deu-mas porque achou que tinham a ver comigo. A segunda chamava-se "Jardim das delícias", mas não encaixava tão bem.

Quer dizer que a "Valsa" surgiu depois, em substituição dessa?

O Tê mostrou-ma já depois de eu ter musicado "Demónios interiores", de que gostei logo até porque tem um final porreiro, os diabinhos a prometerem voltar. Musiquei-a à noite no hotel, arranjei um ritmo que encaixava, toda a primeira parte ficou falada como a debitei. A "Valsa", quando o Tê ma mostrou, meti-a dentro do "dossier" para ver mais tarde. Num bocadinho em que estava sem fazer nada, peguei nela, fui até ao piano e saiu logo. É a coisa mais simples do mundo, já lá estava a valsa. Disse ao Mário: grava já!

"Outono (Estratégia da cigarra)" é mais próxima do jazz. Influência de Chet Baker?

É a minha balada de estimação. Com o Bica, o Möbus...

Na primeira das faixas escondidas, os Dixie Gang retomam "Dom Quixote"...

Foi a maneira como eles acabaram a canção. Só que, se deixássemos tudo junto, a canção ficava com 7 minutos. Assim fizemos um "fade out" e depois retomámos, para apanhar aquelas gargalhadas no fim, aquele clima de festa.

E a décima-quinta, a "Partitura humana"?

Foi um tema que escrevi para exame final de Técnicas de Composição, em 1990, no Conservatório, e que na altura gravei no meu sintetizador. Como saiu dodecafonismo, compus essa peça com as regras do Schönberg. O júri era o Jorge Peixinho, a Maria de Lurdes Martins e o Paulo Brandão. A classificação foi 18 ou 19. Mas depois deitei tudo a perder com a análise, já na oral, da "Missa" do Stravinski. Queriam que eu dissesse "cantochão", mas como nunca mais me saía com a palavra, desceram-me para 15.

O que se ouve no disco é, então, essa peça inteira, na formação original?

Como escolhi na altura do exame a formação do Messiaen do "Quarteto para o fim do tempo", escrevi-a para violino, piano, violoncelo e clarinete. Eu tinha perdido a pauta mas agora que a reencontrei resolvi gravá-la assim, até porque tinha os instrumentos todos no disco. Quis fazer essa experiência, é um trabalho meu, para todos os efeitos.

Concertos com base neste disco? Só em 2005?

Agora ando a fazer as Fnac's, mas a solo. O concerto de lançamento com banda vai ser no Olga Cadaval [em Sintra] no dia 25 de Fevereiro. Com o disco todo, as 13 canções.

Esse número 13, que alguns associam ao azar, prefere vê-lo como sinal de sorte?

Gosto de números ímpares. Normalmente os meus discos têm 11, 13 canções. Mas não sou supersticioso. 2005 vai ser o ano de mostrar este meu "Norte" de norte a sul.


:: Entrevista de Nuno Pacheco - Público, 26/11/2004





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